Ontem, eu, o meu bro (apeteceu-me ser cool agora) e a minha prima fomos jantar ao fantástico restaurante da Associação 25 de Abril. Normalmente meio vazio (estranhamente, já que tem uma localização perfeita, preços acessíveis e comida boa), ontem tinha um jantar de grupo que contava com algumas figuras sonantes da nossa esquerda (dita) mais radical.
Não nos assustámos. Havia ainda mesas livres e ficámo-nos por lá. Afinal, parecia o mesmo que partilhar o restaurante com uma festa de anos. Entretanto foi chegando mais gente para o tal jantar e ficámos os três isolados, sendo os únicos que não participavam na festança. Isso não nos impediu de passar o jantar
naturalmente (o nosso natural é em itálico, falando da vida e analisando, sempre analisando).
Já no final do jantar, compreendemos do que se tratava. Um movimento cívico qualquer estava a entregar uma medalha a um sujeito. Fizeram-se dois discursos e, ao terceiro, percebemos quem era o homenageado. Começou a falar em árabe, com um "tradutor simultâneo", mas sem legendas. Ao princípio nem ligámos (as nossas vidas são tão complexas e interessantes). Mas depois percebemos que o senhor era iraquiano e membro da resistência, se assim se pode dizer. Ficámos mais atentos. Frases como "vamos derrotar os americanos", "eles não sabem o que quer dizer terra", etc. etc. chamam a atenção. Depois começou a falar de estatísticas de guerra, completamente terríveis... começou a falar do que faltava no Iraque. "O país do petróleo não tem energia, não tem água potável, tem uma hora de electricidade por dia (...), um iraquiano é mais estrangeiro neste momento no Iraque que um americano". E por aí fora. O senhor estava zangado. Tem razões para isso. Nos
convidados do jantar, senti o mal estar emergir, ou então foi dos meus olhos. Ali estava o medalhado a ameaçar a
nação americana, depois do café e da sobremesa, falando em números e em factos que revolvem qualquer estômago.
Olhei para os aburguesados
radicais de esquerda. Apesar da diferença geracional, reconheci-me neles. Sentia-se (terei sido só eu?) que o jantar tinha sido, desagradavelmente, estragado. Olhei para a rua. Os carros, as luzes, as cadeias alimentares. Olhei para a mesa, os restos da comida bem temperada, o vinho, os cigarros ingleses. Olhei para nós, belos, belíssimos, sofisticados e modernos, conscienciosos e conscientes do nosso papel político-social. Senti a ironia e a perversidade. Ali estávamos nós todos, todos todos, a olhar para o iraquiano resistente, de algum modo a exultá-lo. Ali estávamos nós, os ladrões. Ali estávamos nós, exortando o aliado e, ao mesmo tempo, temendo o inimigo ameaçador da nossa ordem tão podre.
Saímos os três do restaurante. O bro queria o cartaz da Vieira da Silva (
A poesia saiu à rua), eu e a prima inscrevemo-nos no movimento "Não apaguem a memória" e assinámos o abaixo-assinado. Saímos, fomos beber um copo entre
pares, analisámos um pouco mais a nossa vida. Eu fui-me mais cedo e peguei no carro, já com o depósito na reserva, cheguei a casa, acendi a luz, liguei o aquecedor, lavei os dentes com água quente. Depois deitei-me e adormeci.