Havia uma carochinha à janela. A minha avó costumava-me contar essa história trágica, com um joão ratão que se afogava e queimava num caldeirão depois de ter sido brindado pela felicidade, e onde tudo começa com uma varredela e com um tostão. Contava a história com uma canção. Lembro-me que uma vez o meu irmão fez de gato numa recriação dramática da dita história, mas isso é só um deambular da mente que vai para ali e para aqui. Como agora, como nos últimos dias, porque não pode parar, nunca pode parar... E a mão dela, pela primeira vez desde que me lembro, não me apertava. Da última vez, disse-me "tens as mãos tão frias" e eu disse, com a sapiência de menina bem comportada que ouve sempre o que a avó lhe diz, "mãos frias, coração quente", ela acrescentou "amor para sempre". Amor para sempre, para sempre amor. Para sempre. Pela primeira vez, eram as mãos dela que estavam frias. Pela primeira vez, não me apertava a minha, antes era eu que tentava que ela não fosse, quando sempre foi ela que nunca me deixou ir à primeira. E os beijos, os beijos sem fim, que nunca eram suficientes. Que, no final, eram pedidos por ela, suplicados. Que no final, em vez de me encherem de amor, me deixavam sufocada de culpa. Nunca fui o que ela quis para mim. Os beijos foram elas, as velhas, as outras velhas, que te roubaram no final, beijando a morte, implorando para que não viesse proximamente à porta delas, ao quarto, à cama, enquanto caminham pelo jardim. Não te dei beijos agora. Toquei-te na cara, fria, fria. À espera que me visses agora, sem nada à volta, nem por cima nem por baixo. Como tantas vezes te vi. Na marquise, vó, debaixo da mesa, a correr pelos corredores, a roubar-te bolachas. Todos sabemos o segredo, entre nós, está o segredo. E é esse segredo que nos leva a fechar os olhos e a sentir que não há volta a dar. Como o sorriso dele, na campa, o sorriso do meu avô, passados 4 anos, tranquilizou-me perante a minha avó. Tranquilizou o meu coração, porque o reconheci e quis enfim sorrir com ele, sabendo o segredo não dito. Entre nós apenas, o segredo da alegria, não se canta à mesa. E o G. a dizer que queria saltar para cima das camas para acordá-la finalmente irritada, pronta para o raspanete, um fogozinho na casa-de-banho talvez também a despertasse, uma planta derrubada para o chão, a terra espalhada, vai lá entretê-la enquanto voltamos a pôr a terra no vaso, enquanto apagamos o fogo na casa-de-banho, enquanto compomos a cama, traz também para mim uma bolacha. Não deixes que ela te veja. Vê-me agora, por favor, como te vi, há uns instantes. E nós sabemos o segredo, mesmo que não o possamos dizer. O segredo era o amor.
bombazzine
Agora em versão ferrugem. Liberdade, conforto e estilo. Um blog a favor de joelheiras e cotoveleiras, porque a protecção também é importante. Coçado, mas duradouro e com rendas nas bainhas.
5 Comments:
... como há 2 dias. como ontem. hoje também, o abraço apertado.
Tantas vezes me ri com as vossas histórias... a fogueirinha dos primos na casa de banho é qualquer coisa de hilariante, como é rica a vossa história juntos, como é rica de amor e de vida.
Não a conheci, não sei bem porquê,mas sei que foi por pouco porque pelas tuas palavras estivemos sempre perto. Falavas muito na tua avó, com muito amor e carinho. E cá estarei para ouvir as histórias e rir, para sempre.
Num almoço fugaz, num jantar festivo, numa estreia, por aí, o breve vislumbre da tua família fez que, para sempre, para mim, pensar em vós fosse como entrar num sítio "quentinho". Um beijo muito grande.
os netinhos lindos da avó e do avô....as filhas queridas, o filho querido e os genros e nora adorados....somos nós que ficamos....com a força do avô e da avó....com a vontade deles de nos sentirmos sempre uns aos outros...de nos mantermos juntos como eles sempre fizeram questão!!sinto saudades e só queria mais um momento...mais um toque...mais um sorriso...!!!Somos os trinas e vamos ser os trinas para sempre...à vontade deles...refelxo do que foram para cada um de nós...!na verdade nunca conheci família tão perfeita!!
um abraço quentinho para ti
Enviar um comentário
<< Home