sexta-feira, setembro 28, 2007

Elogio à inflexibilidade

O prémio já era conhecido há algum tempo, João Pacheco ganhou o Prémio Gazeta Revelação, atribuído pelo Clube de Jornalistas, por reportagens que escreveu para a revista Pública. A entrega de prémios foi, no entanto, na passada terça-feira e a cerimónia teve como convidado o "nosso" Presidente da República.
Foi perante ele e "restantes convidados" que João Pacheco dedicou o seu prémio a todos os jornalistas precários. No seu discurso, elucidou o público sobre a situação profissional precária que vive, denunciando o que toda a gente sabe e vê - que a precariedade no trabalho é uma constante em Portugal, especialmente entre os jovens, e que o seu caso não é excepção. Fê-lo quando o bom-senso subserviente o aconselharia a ficar calado e a agradecer de mansinho. Fê-lo porque é "inflexível" nas suas convicções, algo muito menos comum que a flexibilidade reinante (que é como quem diz, a capacidade de engolir sapos).

O João evita dores de estômago e ganha em peito feito. Depois da sua entrevista em directo para o Jornal 2, até a jornalista Alberta Marques Fernandes se permitiu fazer um discurso político, evidenciando o direito constitucional ao emprego e sublinhando a situação comum da precariedade. O João fez muito mais do que a maior parte consegue fazer, usou um veículo seu para carregar uma série de gente. E fê-lo, como sempre, com dignidade e humor, sem paninhos quentes. A parte do dinheiro que recebeu (já que dividiu o seu prémio com os repórteres fotográficos) diz que servirá para pagar as dívidas à Segurança Social, fim que designou como "nobre", mesmo não tendo "rendimento fixo, nem direito a férias, nem protecção na doença nem quaisquer direitos caso venha a ter filhos".

Eu faço-lhe a vénia, como tem ele por hábito fazer. Parabéns, João! Bem hajas!

Para ler o discurso, podem clicar aqui ou de forma mais "oficial" também aqui. Vale bem a pena!

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segunda-feira, setembro 24, 2007

Dedicatórias

O melhor da melhor música cantada em português é o imediatismo poético e existencial das suas letras. Com o português, a capacidade de nos reconhecermos está imediatamente aberta e, num instante, conseguimos (ou não) vestir aquelas palavras na nossa vida. Viver uma canção como nossa passa por nos apaixonarmos por ela intensamente. Isso a meu ver só é possível com uma canção cantada em português. Por muito que se "transpire" com uma canção estrangeira, ela é sempre exterior, não se pensa da mesma maneira. Já não sei quem foi, mas foi alguém importante porque aprendi isto na faculdade e na faculdade aprendem-se coisas de pessoas importantes, que disse qualquer coisa como "quando morrer, morrerei na minha língua" ou algo parecido, mas esta foi a ideia que retive. Na nossa língua, não há muros que se interponham, não há obstáculos. Eu respiro em português e nunca saberei fazê-lo de outro modo.

Isto para dizer que não há melhor música que a cantada em português, por muito boa que seja a estrangeira. Exemplo disso são os Gift, que, com uma cançãozinha em português, fizeram mais eco do que com os 3 discos anteriores, muito bons mas cheios de língua estrangeira. Não é por acaso. Não é por acaso que as canções cantadas em português (insisto nesta expressão porque incluo obviamente os brasileiros) são muito melhores para dedicar a alguém, ou para acompanhar um momento ou revivê-lo.

E interessante ainda, são muito melhores quando não vemos o teledisco. Quando simplesmente as ouvimos, sem outras referências para além da música e da respiração em português. Mas como só tenho forma de as pôr aqui com teledisco, cá vai esta do Tiago Bettencourt (sem Toranja), que tão bem se dedica.




Ainda outra muito boa, que me espanta gostar tanto, porque nem sou grande fã do Jorge Palma, é esta. Esta é uma canção em que ouvir e ver nada tem mesmo a ver. A interpretação é totalmente diferente - se a ouvir me parece uma coisa, a ver este teledisco sinto que o homem se está a despedir da vida.

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sexta-feira, setembro 21, 2007

A emancipação deles

A emancipação das mulheres já passou por um longo processo, já atravessou fases, já recolheu dividendos. Não parou, não estagnou, é ainda muito necessária e vital em muitos momentos e em muitas partes do mundo, não fosse dar-se o caso de estatisticamente o mundo estar inundado de números que justificam essa mesma emancipação. Falar em emancipação, hoje, é falar sobretudo em derrubar estereótipos, ultrapassar canônes sociais redutores e muitas vezes ameaçadores, que tanto podem variar entre a eliminação de práticas institucionalizadas de violência sobre as mulheres ou, simplesmente, aumentar o peso (na balança) das top-models. Na sociedade ocidental, capitalista sem freio, adepta do culto da beleza e do social, falar em feminismo implica falar de emancipação dos canônes veiculados pelo certo lifestyle trendy que nos vendem massivamente. Implica libertar-nos daquilo que a tv, jornais, colega do lado nos vociferam sem dó nem piedade, ou sequer consciência do que falam. Implica sobretudo libertar as nossas crianças de um certo tipo de socialização que nada tem a ver com integração na sociedade, mas apenas com sufocação de identidade na sociedade. Falar de feminismo, nesse sentido, é falar do processo de liberdade. E, por isso, para mim, não há feminismo, sem "masculinismo" (palavra bem feia e sem qualquer credibilidade).
O homem (com agá pequeno) está longe de estar livre dos estereótipos impostos, como se pode ver neste artigo do Público, que revela um estudo sobre o Papel dos Homens na Família em Portugal. Que homem, pergunto eu, será livre se ainda se considera como o pilar financeiro de uma família? Que homem será livre se não conseguir perceber o que quer para além do próprio facto de ser o "provedor" do lar? Se não for mais do que a imagem lançada por gerações e gerações, que liberdade é a sua?

Parte dos homens sente-se sem dúvida ameaçado pelo feminismo. Porque de alguma forma, pressente que a emancipação das mulheres pressupõe um combate contra ele e uma destruição das expectativas que poderá ter sobre a mulher. Mas a meu ver sente-se assim pelas razões erradas. O feminismo, como o vejo, é a favor do homem - só assim faz sentido. É a favor da libertação do olhar do homem sobre a mulher. E, por consequência, é a favor da liberdade do olhar do homem per si. Sem instrumentalizações dos antepassados. O homem pode sentir-se ameaçado, sim, porque provavelmente a emancipação de si próprio implica alguma destruição de si próprio ou de alguns pontos que tem como seguros na sua dita "virilidade". Mas o homem merece mais que ser viril. O viril vem-lhe com o pénis. Merece ser uma pessoa completa, com direitos que a sociedade já lhe reconhece e que ele ainda não sabe reclamar. O homem merece ser total. E para isso a mulher tem de ajudar, libertando-se também do olhar que tem sobre ele, superando esse olhar. Porque só assim seremos livres, homens e mulheres.

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quinta-feira, setembro 13, 2007

Primeiro dia

Primeiro aparecem os algarismos e as letras e depois começam a juntar-se todos e a formar coisas novas. Coisas que nos fazem perceber melhor o mundo, que nos fazem perceber melhor a nós próprios. Coisas para nos expressarmos.
No fundo, são "apenas" coisas que se aprendem na escola. Aprendem-se coisas que servem para outras coisas mais. E, às tantas, há tantas coisas que já nem sabemos como elas surgiram primeiro.

Não sei qual a primeira palavra que li com olhos de ler, nem a primeira soma que fiz sem ser com maçãs, mas passei por aí. E hoje é ele que começa. Que entra por aí adentro, pelo mundo fora, parece-me agora neste instante, em que de repente já está grande de mais. Como se a autonomia, visível de dia para dia, fosse agora ainda mais real, mais inevitável que andar ou comer ou fazer chichi sem fralda. Porque agora a sua expressão, já tão expressiva, tão senhor das suas próprias ideias que é, vai ganhar novos contornos. Contornos cada vez mais humanos. A linguagem, a escrita, a leitura, a língua portuguesa, tudo para ele por abrir, agora neste instante, pela primeira vez desta maneira.

E não há como não me comover, porque cada vez se torna mais livre, com as suas próprias palavras, com os seus números e contas, com as suas ideias. Não há como não me comover... Porque, quanto mais autónomo, mais próximo fica do mundo, das pessoas e também de mim. Cada vez mais pessoa que é... não há como não celebrar este dia.

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quarta-feira, setembro 05, 2007

E o teu coração como vai?

A pergunta "como é que estás do coração" pode ser interpretada de diferentes formas consoante a pessoa que a faz e a pessoa que a ouve. Se é feita a um homem com história de problemas cardíacos, provavelmente trata-se de uma pergunta literal. Mas se é feita, vá, a uma mulher de trinta anos, com história de problemas amorosos, a pergunta é um pouco mais metafórica.

São apenas exemplos, mas não é que, ao que parece, os médicos tendem a usar um critério semelhante, mesmo sem conhecimento da história. Segundo uma notícia hoje publicada, os médicos tendem a desvalorizar sintomas relacionados com doenças cardíacas quando apresentados por mulheres e não fazem os mesmos exames que habitualmente fazem a um homem. As dores do peito nas mulheres são tomadas normalmente como sinal de ansiedade e de depressão.

Ora, isto tem duas razões e a primeira está no tal estudo. Essa é a seguinte: “A doença cardiovascular (que inclui o enfarte e a angina do peito) continua a ser tendencialmente mais associada ao homem, quando tal deixou de ser verdade.” O pessoal não acompanhou os tempos e esquece-se que agora as mulheres têm tanto ou mais stress que os homens e fumam e bebem o mesmo. A mulher já não está protegida num mundo privado, fechado e doméstico.

A outra razão, mais pessoal, é que possivelmente a depressão e a ansiedade continuam a ser tendencialmente mais associadas às mulheres, quando tal terá deixado de ser verdade. E isso denota um forte estigma para os dois sexos. Perguntar a uma mulher como está do coração, a não ser que seja uma velhinha queriducha, quer dizer, para um ouvido comum, como é que vais de amor. Supõe-se que um homem com dores de peito está mais perto de um ataque cardíaco do que de um ataque de choro.

E isso, parece-me, poderia não ser grave, desde que o raio do médico faça os mesmos exames ao menino e à menina quando se queixam de dores no peito. É que até na doença somos discriminadas, xiças!

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