Ontem fui pela primeira vez, aos trinta anos, a um festival de música (o Avante é muito mais que isso). À partida, um festival que tem no nome uma marca de cerveja promete, nem que seja uma ligeira (ou talvez não) ressaca no dia seguinte. Mas Scissors SIsters promete muito mais, uma vez mais, que a cerveja. E então lá fui eu assistir ao fenómeno, com convite no bolso.
Eu sou fã sobretudo de concertos com cadeiras confortáveis, sobretudo nas primeiras filas, sobretudo de música brasileira. Mas se há uma oportunidade de dançar, nunca a recuso. E esta era uma delas.
Cerveja na mão, atitude expectante e receptiva, estado físico geral bom ou razoável são as condições mínimas para entrar no espírito. Mas o importante talvez não sejam os concertos.
Vista geral - uma das coisas que salta à vista é a presença dos patrocinadores. O mercado impera, mesmo que ilusoriamente possamos pensar que estamos numa "cena alternativa". A quantidade de stands promocionais, com uma variedade estúpida de animações idiotas, é invejável. Talvez seja por isso que se têm estes nomes no cartaz, mas não há que enganar: além da música, um festival é um veículo para as marcas, um chamariz comercial, uma oportunidade para uma vez mais vender.
Vista detalhada - quando cheguei ao "recinto", começou o concerto de Gossip, que gosto q.b., mas que não ouço especialmente. Ora, esta banda (concerto brilhante, brilhante) tem uma vocalista gorda, mas gorda. Com uma voz e uma energia inacreditáveis, a sujeita é uma verdadeira guerreira da performance. A seguir, foram os TV on the radio, que pouco me dizem (aproveitei para comer e beber mais), que têm três membros negros, entre eles um vocalista e um baterista giraços como tudo. Logo depois, Scissors Sisters (nunca mais passam por Lisboa sem eu lá estar, garanto), com a sua atitude completamente
queer,
outrageous e debochada. Ora, temos, em linguagem corrente, uma gorda, um preto e uma bicha louca como vocalistas de algumas das principais bandas da noite. Se isto não é contra-corrente, não sei o que será. E não será por acaso que os Interpol, com o seu vocalista louro, hetero, depressivo, tenham tido uma prestação monótona e entediante (bem sei que não é a opinião geral).
Vista pessoal - as pop-stars podem ser verdadeiros motores da mudança de mentalidades. A Madonna e o George Michael são (a Madonna já foi mais) verdadeiros impulsionadores da emancipação sexual. Bono, Sting, Angelina Jolie, Lady Di e mais uma vez a Madonna dão a cara por causas humanitárias e ambientais a toda a hora (excepto a Di que ja foi ao ar e o Sting é um bocado parvo, mas pronto). "A gorda, o preto e a bicha" representam isso. Representam a contra-cultura (mesmo que seja comandada pelo mercado, não tenho ilusões) e a capacidade de invadir os lares conservadores (assumidos ou não) com figuras esteticamente desagradáveis para tantos e, mais importante, com estilos de vida fora da norma. Mas nem tudo são rosas, porque a devida distância que a estrela pop está dos seus fãs relativiza a imagem. Ou seja, uma estrela é excêntrica, não é real e não apela ao reconhecimento - é simplesmente um ser de outro planeta. Além disso, o público tende a normalizar e a integrar a sua diferença no seu modelo, como um sujeito que, tendo adorado Scissors Sisters, disse "eles têm aquela atitude toda queer, mas até não passaram das marcas", como quem diz "até se portaram bem para paneleiros". Ou o discurso genérico do "ela é gorda, mas é fantástica", como se à partida se esperasse menos da gorda. Ou o facto inequívoco de o preto ser um giraço ser muito mais relevante do que o branco ser giraço exactamente por ser preto, e isso ser muito mais exótico e atraente. Mas, ainda assim, "a gorda, o preto e a bicha" são fundamentais, por todas as gordas, pretos e bichas que há por aí, e por toda a luta contra o preconceito. Da mesma maneira que a Jolie é fundamental, porque mostra que boazona branca consegue ser uma "ganda maluca" e ao mesmo tempo andar a fazer campanhas humanitárias. Embora a tendência do público seja pensar que a puta virou santa (um pouco como a Madonna, aliás), como se não houvesse mais e mais ínfimas possibilidades.
Uma palavra final para o prazer de andar pelo recinto e encontrar amigos.
Etiquetas: liberdade, orgulho, pop-stars