terça-feira, julho 17, 2007

A coisa do fascínio

Há coisa de dez anos, meti-me no teatro, por acaso e por "mera" afinidade afectiva, como quase tudo na minha vida. Rapidamente, o acaso e o afecto das minhas circunstâncias naquele lugar foram substituídas pela escolha consciente e pelo fascínio pela coisa. A magia do teatro, tantas vezes nomeada, passa muito mais pelo processo do que pelo acto da apresentação pública. No fundo, é uma e a mesma coisa, pois o fascínio é despertado pela presença dos corpos e das mentes, a superarem-se ao vivo para ti, pela energia que se concentra em determinado lugar com determinadas pessoas, ligadas naquele instante apenas pela ideia romântica de um espectáculo. Sobretudo, a magia do teatro está no trabalho conjunto. Está na linha ténue que separa a realidade da ficção, a normalidade do absurdo, a espontaneidade da elaboração. Essa linha é fascinante, mesmo que seja perigosa. Para um actor, as coisas são com certeza diferentes, mas para uma testemunha como eu, é aí que reside a paixão.

Mas já algum tempo que me sabia desapaixonada dessa coisa do teatro. O mais verdadeiramente rico no teatro -as pessoas, o tal colectivo- é também o mais podre, cansativo, exaustivo e, por vezes, entediante. A humanidade do teatro é fascinante, mas o reverso dessa humanidade pode esgotar o resto. As pessoas tornam-se simplesmente pessoas e a paixão só pode continuar se estivermos igualmente envolvidos de forma profunda com o acto teatral em si. E a verdade é que eu não fiquei. O acto criativo, a própria razão de ser do teatro, aborreceu-me. De tal modo que é-me penoso assistir a espectáculos de teatro. Irrito-me, entedio-me, não me surpreendo e, tantas vezes, o que me prende são novamente as pessoas e pouco mais. Diria que era como se se tivesse perdido a magia, como uma ilusão caída por terra.

Até ontem. Ontem não fui ao teatro, mas fui ver o "Ensaio sobre o teatro", um filme sobre o espectáculo "Ensaio sobre a cegueira", d'O Bando. Ao ver a magia aparecer de novo à minha frente, ao sentir o brilho nos meus olhos, uma espécie de embasbacanço generalizado num sorriso alegre e numa admiração incontida, percebi que o fascínio nunca desapareceu. Afinal ele permanece vivo dentro de mim, mesmo conhecendo as manhas, as fraquezas, os truques, aquele fascínio permanece. Mesmo não tendo especial vontade de voltar, mesmo que nunca mais aprecie um espectáculo de teatro, serei sempre uma apanhadinha daquela arte. E isso já ninguém me tira.

Tudo isto para dizer para irem ver, até 25 de Julho, o filme no Cinema São Jorge. Poucas coisas serão mais ternas que a máscara por detrás da máscara, mesmo quando já vimos por detrás da máscara da máscara. O humano é sempre imensamente belo.

Uma palavra ainda para a Sara de Castro (a única pessoa que me pode fazer voltar a habitar aquele lugar) que, embora não apareça no filme, foi a protagonista do "Ensaio sobre a cegueira", na segunda série de espectáculos. Para mim, é sempre a primeira.

Etiquetas: , ,

9 Comments:

At 17/7/07 4:39 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Eu cá acabei por ficar com saudades do tempo em que ia ver as tuas peças... e claro a sara nelas.

Quem sabe um dia destes...e desta feita eu faço o cartaz!!!

 
At 17/7/07 5:47 da tarde, Blogger ana said...

pq é que o acto criativo te aborreceu?

 
At 17/7/07 5:56 da tarde, Blogger ana vicente said...

não foi o acto criativo por si que me aborreceu, mas sim o acto criativo em teatro.

às vezes parece que já vimos tudo e que estamos só a repetir-nos. e isso bloqueia o próprio acto criativo. deixamos de estar estimulados e de produzir estímulos.

 
At 17/7/07 6:25 da tarde, Blogger ana said...

mas isso era feito mais ou menos sp com as mesmas pessoas ou foste variando?

 
At 17/7/07 6:30 da tarde, Blogger ana vicente said...

o problema não são as pessoas, são os processos.

se o olhar está viciado, não interessa muito para o que estás a olhar.

 
At 17/7/07 6:37 da tarde, Blogger ana said...

entendo
e fico contente que a "magia ter aparecido de novo"

 
At 20/7/07 1:04 da manhã, Anonymous Anónimo said...

"O humano é sempre imensamente belo"

este verso explica-se a si mesmo

beijo

teu cumplice ,,manso

 
At 23/7/07 2:39 da tarde, Blogger ana said...

ok, já fui ver o filme. sim senhora está bem bonito.

agora à frente! mais uma postada aqui para a mesa do fundo, ohfazfavor!

 
At 17/8/07 7:05 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Perguntaste-me no outro dia por onde ando. Adivinha? No meio de mais um processo criativo, em residência artística, com este calor, quando tudo está de férias. Com os mesmos de sempre e outros novos, o Jonas, o Miguel. Tenho pensado em ti, tinhas que ver, tinhas que cá estar. É maravilhoso, Ana, como isto se renova mais uma vez, outra vez. Somos os mesmos, mas somos outros. Fico sempre deslumbrada com as novas revelações. E como isto me transforma...
Eu também tenho muitas saudades de me por em causa contigo, no teatro.

 

Enviar um comentário

<< Home