Quem é maluquinho, quem é?
Em mais uma aventura de levar o miúdo à escola, com o desnorte habitual do trânsito e a complicação para estacionar, como não ter uma história?
Eu falo com os outros condutores, quando conduzo. Não consigo evitar. Faço comentários. Chamo-lhes nomes. Dou-lhes bons conselhos e por aí fora. Quando vou com a criança no banco de trás, evito os palavrões, mas continuo a verbalizar as minhas frustrações e satisfações de condutora urbana. Normalmente o puto indaga sempre sobre o que eu estou a dizer. Por exemplo, eu digo "ó senhor passe", e ele pergunta logo que senhor e passar onde. Pois bem, hoje decidi justificar-me: "sabes que eu tenho esta mania de falar com os outros condutores, mas eles não me ouvem. É quase como se estivesse a falar sozinha".
Ao que o petiz responde: "os malucos é que falam sozinhos".
SIRENE! ALARME NA MINHA CABEÇA! BARULHO ESTRIDENTE A ALERTAR A MINHA CONSCIÊNCIA DE MULHER PROGRESSISTA!
"Quem disse que quem fala sozinho é maluco?", disse eu com um ar aparentemente calmo. "Foi na escola". Putas, cabras, vacas! (pensei, não disse)
COMO É POSSÍVEL? A mim disseram-me a mesma frase vezes sem conta há mais de 20 anos. Ainda a mesma conversa? Xiça!
Comecei logo, pedagogicamente, a dizer que não. Que muitas vezes, falávamos sozinhos e não éramos, por isso, malucos. Era o que me faltava agora essa conversa de sempre.
É assustador ouvir de uma criança de 4 anos uma frase proferida pela minha avó, noutros tempos. Vês toda a socialização a ser efectuada num ser pronto a receber quase tudo e quase indiscriminadamente. No entanto, fiquei contente. Pois, de facto, é bom que alguém lhe diga isso e também é bom que, logo a seguir, eu diga que não acredito nisso.
(e agora vou ali para o canto rezar para que ele não ache que quem fala sozinho é maluco - rezar, saliento, que também pode ser confundido com falar sozinho. quem é maluquinho, quem é?)
4 Comments:
Maluquinho é quem nunca fala sózinho. Verbalizar o pensamento é, sem dúvida, uma forma de se libertar
- Mas eu não quero andar entre gente louca – protestou Alice.
- Oh, não há nada a fazer – disse o Gato. – Aqui somos todos loucos. Eu sou louco e tu és louca.
(Lewis Carroll)
(Post transformado em comentário)
:)
Essa última parte de rezar ser uma forma de falar sozinho, faz-me lembrar aquilo que escreveu o psiquiatra americano Thomas Szasz: “Quem fala com Deus, reza. Quem ouve Deus, é esquizofrénico.” Ou seja, uma coisa de maluquinhos como é rezar (risos), só não é vista como coisa de maluquinhos porque foi socialmente codificada enquanto comportamento legítimo e aceitável. Já ouvir vozes é considerado uma anormalidade e sinal de loucura/doença. Mas em outros contextos culturais não foi certamente assim. E não foi, porque estas coisas sempre existiram e as sociedades não encontram tanto explicações para elas, quanto formas de as resolver (ou seja, as explicações são elas próprias formas de resolver a coisa, e não de chegar à verdade sobre a coisa). É provável que numa sociedade ameríndia alguém que ouvisse vozes acabasse por ser, não vomitado como doente, mas valorizado como alguém que tinha capacidades especiais de comunicação com o espírito dos mortos. O que pode dar, no contexto ameríndio, um xamã, sem tirar nem pôr. Um daqueles que de médico e de louco tem um pouco. Ou no contexto ocidental um brilhante psiquiatra como o Thomas Szasz. :)
eu gosto da parte em que dizes "No entanto, fiquei contente. Pois, de facto, é bom que alguém lhe diga isso e também é bom que, logo a seguir, eu diga que não acredito nisso."
é bonito teres a coragem para não isolares o miúdo das opiniões com que não concordas
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