quarta-feira, novembro 22, 2006

Dia em forma de buraco

Hoje faria 89 anos.
É o primeiro 22 de Novembro diferente de todos os outros. É uma espécie de dia em forma de buraco. Mas um buraco para preencher. Preencher da alegria das recordações, mas principalmente preencher da alegria da vida.

À medida que o tempo passa, a mulher permanece ainda mais um mistério. Não a avó que, à medida que o mesmo tempo passa, vai-se resolvendo dentro de mim, como reflexo da pessoa que sou. Mas a mulher torna-se um mistério. Como se, nela, nas suas relações desde o início, desde 1917 e antes disso, se entranhasse uma história por contar, a minha própria história, a história de todos os que por ela passaram, que nela viveram, que com ela viveram. Como se as raízes do que sou, agora aqui no computador, passassem inevitavelmente por ela.

Tenho saudades da avó, mas não é dela que sinto falta. A avó já lá está nessa minha constituição, uma avó excepcional, carinhosa e amorosa como as avós devem ser, mas melhor porque é a minha e porque me ensinou o afecto como ninguém. Sinto falta da mulher que nunca conheci, que se deixou esconder, que se fez esconder, que permiti que se escondesse. A mulher cujos anseios e desejos não conheci. Uma mulher que, passados todos estes anos, pudesse ver como par.

Não sei bem o que procuro, pois não sei o que encontraria. Mas algo me diz que a maturidade, ou a idade adulta ou lá o que é, passa por olhar para aqueles que estiveram sempre lá como avós, pais, irmãos, primos, tios, como pessoas nas quais nos podemos reconhecer para além dessa relação constituinte. Vê-las simplesmente. Não sei se é possível isso acontecer numa família. Não sei se há famílias que se conheçam para lá das suas relações de sempre. Famílias que corram o risco de se descobrir ou de se deixarem de esconder. O risco é grande demais. Deixar de se assumir certas coisas como garantidas. Forçar o olhar a ir mais além da dependência ou da habituação. Com que fim? A que preço?

Se a minha avó aqui estivesse, seria eu capaz de quebrar o mistério?

Preencho este buraco com alegria, porque a vida é amável, como escrevi mais abaixo. Porque novas criaturas, crianças, bebés, crescem à minha volta. Pessoas reais, essas novas criaturas, a quem não me posso permitir esconder. Pessoas a quem posso passar esse afecto que, um dia ou em muitos dias, fui aprendendo com ela. Pessoas a quem posso dizer, um dia ou em muitos dias, o que desejo e de onde vim, mesmo escapando-me a história não só da minha avó, mas de tantos outros que fazem parte da minha constituição. Por essas novas criaturas, essas crianças belas, pessoas tão disponíveis, correrei todos os riscos para que me possam ver.

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5 Comments:

At 23/11/06 10:22 da manhã, Anonymous Anónimo said...

a minha avó fez 79 anos. no mesmo dia que a tua, como sabes.
acho que, mesmo estando cá ainda, não sou capaz de quebrar o mistério do qual falas, ver para além da minha relação de sempre com ela. porque é mesmo assim.
mas estás cá tu para me lembrares das coisas importantes.

 
At 23/11/06 1:20 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Eu quando olho para a minha Mãe, agora avó, vejo com clareza que a Mulher que ela é se divide em 2 papeis tão diferentes.

A Mãe está a milhas da Avó que está a Milhas da Esposa que está a Milhas da Irmã...

Já te disse e volto a repetir...gostava de ter conhecido a tua Avó. E eu que gosto tanto de rins . Aqueles bolinhos que ela te comprava e que tu, Boa menina no papel de netinha, lá comias.

 
At 23/11/06 2:57 da tarde, Blogger ana vicente said...

ah, boa amiga, os rins de chocolate...

mas há que dizê-lo que esses não eram desta avó, mas da outra. esta embicou com os folhados de salsicha... que, embora não fossem de todo os meus preferidos, eram salgados e, portanto, mais ao meu gosto.

Mas lembrando-me da outra avó, que tinha um nome que achava estranhíssimo e agora acho maravilhoso, acho que com ela tive mais possibilidades de ver a pessoa. Talvez ela não se tenha escondido tanto numa figura de avó, mas foi para mim mais a mulher... (e agora ia continuar, mas acho que chega de análise por hoje, cajánãomaaguento)

 
At 24/11/06 10:44 da manhã, Blogger ana said...

que lindo!
é tão engraçado! penso tantas vezes nisso, de como gostava de conhecer as pessoas para além dos papeis familiares que assumem. como a minha mãe é um mistério para mim e a minha avó tb foi (personagem fortissima, estoica, silenciosa mas sp atenta)

estaremos demasiado proximos, irremediavelmente proximos para nos podermos dar a conhecer pq o risco é demasiado? é demasiada entrega sem possibilidade de fuga?
sei lá eu!

 
At 24/11/06 12:25 da tarde, Blogger Miguel Marujo said...

Os nossos avós são um mistério, mesmo que os conheçamos até tarde, ou como eu os percamos de vista (próximos no resto) muito cedo. Mas o mais estranho é ouvir as histórias cruzadas e dar-lhes um corpo e uma matriz, passados tantos anos, em que descobrimos homens e mulheres com «anseios e desejos». Continuamos sem os conhecer, mas vemos ali gente que também se enganou, errou, desejou. E o mistério adensa-se porque não estão cá para nos contar, explicar ou revelar-se.

[E desculpem a colherada, numa conversa feminina, como a que estava aqui.]

 

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