segunda-feira, janeiro 29, 2007

Sacana (post pessoal)

Ele pode ter acabado com o blog, mas os textos que me envia por email estão a tornar-se perigosos. Fazem-me querer enviá-los em meu nome. Isso costuma acontecer-me com canções, grande sacana! Estilo já tinhas, agora parece que estás a apurar a alma. Ouço bem a tua voz.

Bem hajas Manso. Publica!

deixo aqui um dos últimos, até porque o tal pátio é meu.


"Le Bassin de John Wayne

Um dia apaixonei-me por uma mulher mas antes disso arranjei um gato. Uma gata, mais precisamente, que veio cá para casa quando era muito pequena. Não bastando isso de andar a trazer bichos para casa, a mulher por quem me apaixonei não se apaixonou por mim mas apaixonou-se pela gata, que não se apaixonou por ela nem por mim. Mas a gata era toda olhos redondos da cor da folha de louro seca e olhava-nos profundamente sem desviar o olhar (era uma gata napolitana nascida num pátio do bairro da Graça).

Foi muito triste porque uma vez, quando estávamos eu, a gata e a mulher por quem me apaixonei todos na salinha da minha casa de bonecas, com a janela aberta para um belíssimo e cruel Agosto, foi muito triste, dizia, porque eu olhava a mulher que olhava a gata que a olhava a ela. Gata e mulher olhavam-se fixamente: na cara da mulher um enternecimento pela gata, na cara da gata um desprezo curioso pela mulher por quem eu me tinha apaixonado.

Eu olhava as duas e depois olhava para o Verão cruel e belíssimo da minha rua lisboeta e pensava: não me vou safar nem com uma nem com outra. Por isso, naturalmente, a mulher por quem me tinha apaixonado saiu da minha casa de bonecas perdendo-se nesse Verão cada vez mais cruel e belíssimo e a gata foi ficando e crescendo na minha casa de bonecas de uma rua lisboeta.

A gata cresceu e deu num bicho um pouco estranho. Passo a explicar: a gata que eu tenho faz lembrar alguém: passa pé ante pé entre nós e não podemos ficar indiferentes: a parecença é assustadora. Quem a vê pode pensar: esta gata faz lembrar alguém ou alguma coisa e não percebe logo com quem ou com o quê a gata se parece, e quando percebe finalmente com quem ela se parece, exclama para si: mas é óbvio! E é estranho. E é mesmo.

Esqueçamos por favor Cleópatra. Mussolini também não é para aqui chamado. Esta gata não é a encarnação de ninguém, é apenas um bicho que nasceu num pátio da Graça num dia de Abril, e tem olhos cor de folha de louro seca e um nariz cor-de-rosa. E mais: esta gata quase não ronrona, optando por um expressivo e intimidador "ronrosnar".

O que se passa tem mais que ver com o gingado e a minha gata maneia-se ao jeito de John Wayne. A forma como se aproxima, o jeito da cabeça e do olhar, mas acima de tudo o movimento da bacia, dos quadris, tudo isso é um decalque do andar de John Wayne. Estou a escrever isto e ela está a passar aqui agora. É mesmo, não há dúvidas, aquelas patas de trás, a bacia. Agora sentou-se e é outra vez uma gata, sentada num quadrado de sol na carpete suja.

É um pouco assustador quando a nossa gata imita sem saber uma característica muito particular de uma estrela de cinema dos anos cinquenta. Não é a mesma coisa que o meu irmão, quando era mais pequeno, ter chegado à conclusão que o seu pé, descalço, lhe fazia lembrar a cara de um jogador do Futebol Clube do Porto. Essa parecença era um pouco mais equívoca enquanto que aqui não há a mínima dúvida, tragam-me cá um perito da cinemateca e vão ver que ele corroborará.

Mas para ser sincero, incomoda cada vez menos conviver com o andar de John Wayne dentro de casa. O que me aleija mais é olhar a minha gata e ver nos olhos dela a lembrança, como um reflexo que nunca mais se extinguiu, do olhar da mulher por quem eu estava apaixonado.
"

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1 Comments:

At 29/1/07 11:06 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Esse Manso tb tem pinta de actor de cinema, dos bons. Saudades de ver no palco.

(belo texto manso, bonita homenagem vicente)

 

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