quarta-feira, janeiro 17, 2007

O queixume do operário especializado

Odeio a palavra criativo. Odeio-a quando aplicada a pessoas, a objectos, a resultados. Ok, de vez em quando aceito-a aplicada a processos, e... e... mesmo assim, é porque só aí pode ser aplicada com relativa justiça. A palavra criativo é muito usada no meio da comunicação. "Temos de fazer um trabalho criativo", "tens de ser mais criativo" e até se usa para designar pessoas, uns tais de criativos que supostamente são os que criam.

Bom, como operária especializada que sou neste mundo, já ouvi a dita palavra mais vezes do que poderia aguentar. Ouço-a e começo com urticária interna, uma espécie de comichão no cerébro. Pois o criativo não se gere facilmente, muito menos se define do pé para a mão. Além disso, o profissional da área da comunicação/marketing/publicidade/design/etc. sabe que interessam sobretudo resultados e que o criativo se resume sobretudo em agradar a um determinado gosto, uma determinada corrente. O profissional da comunicação sabe que a sua criatividade só pode chegar até certo ponto, porque no final essa irá ser aproveitada e desvirtuada até ao ponto em que se torne eficaz. O grau de empenho, logo a motivação, do suposto criativo está portanto comprometido com essa consciência dos seus limites: a criatividade até pode ser sua, mas o resultado dificilmente será.

E porquê? O próprio processo da comunicação está assim construído. Construído em torno de diferentes mãos, diferentes cabeças, sob uma única arma: a decisão. Não sei de facto a quem cabe a decisão, nem quero alongar-me sobre isso, porque acredito até que o processo está feito de forma a que escape a um olhar externo (e até interno) o verdadeiro decisor (que provalmente nem existe). Mas não é com certeza ao criativo, ao profissional da comunicação, que cabe a decisão. É isso que torna a sua motivação fraca, porque sabe que a sua criação não sobreviverá incólume.

O verdadeiro acto criativo, se é que existe, passa pela decisão do resultado, ainda que este possa ser marcado por limitações exteriores. Por isso, só o artista, o autor, cria. Porque decide. Faz a obra e o público tem simplesmente de frui-la, julgá-la. Tanto faz se o público a deita ao lixo ou se a eleva aos píncaros, ela está feita e foi decidida pelo seu autor.

A lamúria do operário especializado chega ao fim, quando sabe que efectivamente cumpre com o seu papel no processo de chegar aos resultados. Chega ao fim quando deixa de ter ilusões de grandeza criativa e se centra no que é suposto fazer para tornar o processo mais eficaz, já que o resultado não depende dele. O operário especializado recosta-se, exalta os artistas à criação e deixa a criação para a sua própria arte.

Porque o operário sabe que os autores criam e os profissionais da comunicação queriam.

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7 Comments:

At 18/1/07 9:56 da manhã, Blogger triga said...

... e o que nos vale é que a comunicação pode ter muitas expressões fora da fábrica, porque a designação "profissionais da comunicação" também me faz rir às vezes...
no outro dia pediram-me um trabalho e passo a citar: "menos moderno e mais actual" (...) - dá que pensar... mais "criativo", será?!
criativos my ass!

 
At 18/1/07 3:11 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Por quê não fui para artista? (antes dizia "dentista")

 
At 18/1/07 4:16 da tarde, Anonymous Anónimo said...

...e os profissionais da comunicação queriam...
ahahahhaha já me fartei de rir, que grande jogo de palavras! Perfeito!

Quanto ao tema, pois, que dizer?
(n fiques à espera, como sabes pouco tenho a acrescentar...)


;-)

 
At 19/1/07 1:03 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Posto desta maneira, parece mesmo triste o que andamos a fazer todos os dias. Não vejo a coisa assim tão negra.

Há mesmo diferença entre ser artista e ser criativo com limites. Mas acredito que mesmo com eles, a criatividade pode e deve existir. Nesta bela área do desaine em que andamos todos a fazer equilibrismo, não dá para não os ter. Mas a dificuldade está aí, e o gozo também: conseguir o diferente mas sem passar as barreiras impostas - elas têm de existir porque o objectivo quer se queira quer não é sempre comercial, não é ser Van Goghs incompreendidos até à morte. Mas tentando encontrar o que ninguém nunca achou, ser criativo, sim. Parece busca inglória, mas às vezes surgem aqueles rasgos felizes e iluminados. Um misto de racionalidade com a ideia que estava escondida algures... de facto acho que não acredito sequer que aquilo a que todos gostamos de chamar arte pura, sem os tais decisores externos a determinar se é correcta ou válida ou diferente, não sei se até aí será de facto assim. Mas isso era outra questão, muito mais filosófica :D

É uma incoerência que vive conosco. A mim faz-me mais pensar é se o mundo precisa mesmo do que fazemos todo o santo dia... questão existencialista, inútil e eternamente sem resposta...

Já a história de chamar a este e aquele "o criativo" ou melhor ainda "o gráfico" ou raio que os parta, essa já me mete os nervos à flor da pele. Porque acho que somos todos bem mais que isso - ou devíamos ser - precisamente pelos motivos que disse antes.

bjs!

(e desculpem lá o alongamento de texto, deve ser do adiantado da hora, eheheh)

 
At 19/1/07 11:09 da manhã, Blogger ana said...

gostei deste ultimo comentário do rant.

os limites de qualquer arte (seja limites fisicos, do que se pode ou não fazer com barro por exemplo, ou limites "sociais" de serem "comercializaveis" ou não por alguém) fazem parte da própria arte, acho, e podem ser considerados como ponto de partida. é a tal historia (talvez um pouco americana) de ver ameaças como oportunidades ou desafios.
é claro que não sei como isto se aplica ao vosso caso, pq não sei o suficiente como "isso" funciona.

em relação ao que o rant diz "se o mundo precisa mesmo do que fazemos todo o santo dia... "
se alguém vos paga é pq alguém precisa (é o que diz a lei do mercado, acho eu).
mas o que é que o mundo precisa ou deixa de precisar é uma questão mais politica, de como queremos que o mundo seja. eu gostava que o mundo fosse um em que as pessoas trabalhariam metade do tempo, e saberiam usar a outra metade em coisas com significado para elas. e acho que isso seria mm possível, pq há imensa coisa que é produzida que poderia ser reduzida.
o trabalho dos artistas penso que nunca está a mais, pq faz parte das coisas que podem dar significado ao tempo livre dos outros. acho eu, sei lá.

 
At 19/1/07 11:59 da manhã, Blogger ana vicente said...

Rant amiga, eu percebo o que estás a dizer, mas de facto nem estava a desmerecer o nosso trabalho. Pelo contrário tem a sua utilidade, não chegaria ao ponto de dizer que o mundo precisa MESMO, mas tem a sua utilidade. Aquilo que fazemos pode ser aplicado a fins muito nobres, até.
A questão não era essa. A questão que tentei colocar prende-se mais com o processo, com o uso da palavra criatividade e com a decisão. Não acredito que um trabalho em comunicação deva ser simplesmente criativo, se não só existe para ganhar prémios e para divertir. Acredito que um trabalho de comunicação deve ser eficaz de acordo com os objectivos estabelecidos e muitas vezes isso é mascarado. Se nos tiram desse processo de gerar eficácia, exigindo-nos uma suposta criatividade que vai resolver o que quer que seja, o trabalho torna-se vão e pretensioso. Os trabalhos que mais gosto na área são aqueles que realmente são eficazes, funcionais e úteis. Normalmente até são "criativos", mas isso vem quase integrado.

O problema é quando se exige algo que está ao lado. Devemos impressionar um cliente ou devemos tentar apresentar-lhe o que julgamos mais eficaz? é por aí que a corda se rói. Uns quantos vão demonstrando a sua eventual competência com trabalhos com palavras, cores e formas novas (como se fosse possível), outros vão tentando agradar aqui e ali, mas o que interessa é a eficácia. E isso não tem nada de mau. Por isso, é um queixume inútil.

E quando falo em arte, falo sobretudo em autoria, ter a capacidade de decidir perante a obra final. Isso não quer dizer que seja pura ou boa por si, mas sim decidida pelo autor com todas as condicionantes associadas (como diz a ana). Não estou a elevar a arte, estou simplesmente a dizer que ela é uma área em que ao "criativo" cabe a capacidade de decisão.

(não sei se este comentário esclarece ou atrapalha, mas cá fica)

 
At 19/1/07 1:34 da tarde, Blogger ana margarida said...

Que belo momento de leitura. Obrigado por este post.

 

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