Conto de Carnaval
Este ano, a artéria carótida decidiu mascarar-se de sentimental, a coronária vacilou com a falta de cinismo e a aorta quase entupia. Os dois ventrílucos ficaram caladinhos e o septo interventricular deixou de ser microfone dos bonequinhos.
Mas o coração não parou de bombar. Pelo contrário. Estava mais vivo que nunca. As veias pulmonares acusaram algum romantismo, mas nada que os pulmões não aguentassem, graças ao cigarrinho decadente que assegurou alguma distância de tanta pulsão.
O miocárdio diz que até o viu sambar... mas a válvula tricúspide diz que isso é um devaneio da cerveja.
3 Comments:
que linda festança! que esta 4ª feira não seja de cinzas!
aqui vai um sambinha para o teu coração verde-amarelo (do chiquinho-buarque, pois...)
"Tem mais samba no encontro que na espera
Tem mais samba a maldade que a ferida
Tem mais samba no porto que na vela
Tem mais samba o perdão que a despedida
Tem mais samba nas mãos do que nos olhos
Tem mais samba no chão do que na lua
Tem mais samba no homem que trabalha
Tem mais samba no som que vem da rua
Tem mais samba no peito de quem chora
Tem mais samba no pranto de quem vê
Que o bom samba não tem lugar nem hora
O coração de fora
Samba sem querer
Vem que passa
Teu sofrer
Se todo mundo sambasse
Seria tão fácil viver"
Não sei se o carro alegórico ia ser muito atractivo, mas que é um belo conto disso não tenho dúvida alguma.
Fiz um comentario com seu Conto de Carnaval, no conto abaixo:
Tomar uma fresca lá fora
Deitado, jogando tempo fora, já que não havia nada para fazer num fim de semana de muita chuva, relembrava do Carnaval do ano passado. Foi a primeira vez que se sentiu envelhecendo. Resolveu ouvir a marchinha fatídica: “Allah-lá-ô, ô ô ô ô ô ô/Mas que calor, ô ô ô ô ô ô/Atravessamos o deserto do Saara/O sol estava quente/Queimou a nossa cara/Viemos do Egito/E muitas vezes/Nós tivemos que rezar/Allah! allah! allah, meu bom allah!/Mande água pra ioiô/Mande água pra iaiá/Allah! meu bom allah (ALLAH-LÁ-Ô. Haroldo Lobo-Nássara, 1940). Pois bem, esta marchinha marca a primeira vez que se percebeu envelhecendo. Era a senha da orquestra para o salão embolar e a rapaziada pegar umas
meninas e ir lá fora tomar uma fresca. Tudo combinado! O dono da orquestra, que ainda hoje é o mesmo, sabia o que fazer.
Quando a noite e a bebedeira estavam nas alturas e a madrugada se avizinhava, seguidamente, por mais de uma hora, tocava músicas que os pais e as mães das moças caiam no salão, como que por encanto, como nos seus velhos tempos e esqueciam das filhas que estavam vigiando. Era um tiro certeiro. Riu. Sentiu saudades também. Há anos não se importava com Carnaval. A mulher não gostava. Sozinho, não
ia. Perdeu os amigos dos bons tempos de juventude. Para não contrariar a mulher. No ano anterior, separado foi passar o Carnaval na cidade onde nasceu. Não era assim um Carnavaaaal!... Havia um desfile das putas, na segunda-feira no fim da tarde. Fofões, dando alegria e metendo medo na criançada. Relembrou que quando era criança morria de medo dos fofões mascarados. Havia também alguns homens vestidos de mulher, mas usando máscaras. Mas Carnaval mesmo era o das putas.
O dono do cabaré comandava a distração. A cidade inteira nas calçadas pra ver o desfile. Os homens, todos sérios, como se jamais tivessem visto uma puta na vida, suas mulheres, suas filhas e seus filhos. Todo mundo assistindo o Carnaval. Era um acontecimento. Umas 50 mulheres. Todas de roupas de seda. Saias bem curtinhas e pregueadas. Barrigas de fora. Só hoje ele se perguntava como uma cidade de dois mil habitantes tinha tanta mulher no cabaré.
À noite, no sábado, no domingo, na segunda e na terça de Carnaval, um baile no único Clube da cidade. Muita gente fantasiada. Algumas pessoas usando máscaras, como no Carnaval de Veneza.
No domingo à noite, havia o desfile das fantasias. Era um concurso. Lembra que, quando jovens, suas irmãs desfilavam ali naquele palco. Era o baile da sociedade. Isto é, das pessoas consideradas de bem e endinheiradas. Não entrava nem pobre e nem preto. Nem “moça falada”. Só as donzelas.
Parecia que o tempo não passara ali. Desde que se entendeu por gente o Carnaval era daquele jeito. A diferença é que as jovens do seu tempo eram agora umas matronas, gordas e envelhecidas precocemente, vigiando as filhas, como quando elas eram jovens sendo vigiadas pelas suas mães, também gordas e envelhecidas. Igual. Igualzinho.
De repente, volta à memória a sua marchinha fatídica, logo depois de: “Quanto riso oh quanta alegria/Mais de mil palhaços no salão/Arlequim está chorando/Pelo amor da colombina/No meio da multidão. Foi bom te ver outra vez/Está fazendo um ano/Foi no carnaval que passou/Eu
sou aquele pierrô/Que te abraçou e te beijou meu amor/Na mesma máscara negra/Que esconde o teu rosto/Eu quero matar a saudade/Vou beijar-te agora/Não me leve a mal/Hoje é carnaval.” (MÁSCARA NEGRA. Zé Keti-Pereira Mattos, 1966).
Se enroscou numa bela colombina. E ficou abraçado com ela com sua mão boba passeando em seu corpo. Sentia que ela estava gostando, mas quando estava saindo do salão com ela, para tomar um ar fresco, eis que chega a Srª. sua mãe como uma leoa, falando aos berros e o olhar faiscando, enquanto a orquestra soltava os acordes de: “Ei, você aí!/ Me dá um dinheiro aí!/Me dá um dinheiro aí!/Não vai dar?/ Não vai dar não?/Você vai ver a grande confusão/Que eu vou fazer bebendo até cair/Me dá me dá me dá, ô!/Me dá um dinheiro aí!”. (ME DÁ UM DINHEIRO AÍ. Ivan Ferreira-Homero Ferreira-Glauco
Ferreira, 1959).
– Ah, não vai tomar uma fresca com ela lá fora não! Eu sei o que você quer fazer com ela. Fez o mesmo comigo há uns 30 anos. E depois, não vê que tem mais do que idade de ser pai dela, seu velho safado, vai procurar gente da tua igual. Lá no Cabaré do Adilson tem um bocado, algumas que foram lá fora tomar uma fresca contigo em outros carnavais.”
Era a mãe da colombina. Uma ex-namorada. Ela sabia o que significava no carnaval sair do salão para “tomar uma fresca lá fora”. Não era uma brisa...
Luís Alberto Furtado
lalberto.furtado@hotmail.com
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