domingo, junho 18, 2006

Do (in)visível no encontro e na despedida

Amaram-se com a sofreguidão dos corpos desertos onde as gotas de prazer desaparecem pela epiderme abaixo. Vezes e vezes sem conta, antes que os líquidos surgissem e se mantivessem à superfície. Amaram-se como se fossem corvos, antes que algum deles tivesse tempo ou vontade de olhar sequer para a forma que tinha na frente. E só depois desse tempo que lhes pareceu curto mas que fez cair a noite, como acontece subitamente na encosta norte, pararam para se ver.

(...)

Evangelina olhou-o com os olhos que tinha para dar à terra, quando as chuvas inclementes lhe destruíam as horas de trabalho. Ou quando um animal daninho se infiltrava entre as acelgas, roendo-as até à imprestabilidade. A mesma desolação impotente; a mesma irritação deslocada; o mesmo sentimento de injustiça.
Adalberto pôs-se de pé e, Evangelina viu, pela primeira vez, que ele não era assim tão alto. Que tinha crescido aos seus olhos pela palavra. Mas isso não o diminuiu. Pelo contrário: enterneceu-a. E lamentou, mais uma vez, ter nascido quem nascera. Estendeu-lhe a mão, mas com a palma para a frente e, ali, ele alojou os seus dedos; entrelaçou-os, mesmo! e os dois foram a rapariga do trapézio e o homem-bala, num dia de sol sem uma rede por baixo. E, antes que se vissem um ao outro a despenhar no chão, afastaram-se.


Possidónio Cachapa, Viagem ao coração dos pássaros

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